Amazônia, terras dos índios e garimpo à luz da Constituição Federal

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Certamente, nos próximos dias, a imprensa vai falar muito sobre a Amazônia, as terras dos índios e os garimpeiros, sempre procurando desinformar. É prudente conhecer melhor o tratamento que o sistema jurídico dá a essas questões. A Constituição Federal, em seu artigo 1º, coloca em primeiro lugar, entre os princípios fundamentais da República, a soberania nacional. Logo em seguida, no artigo 3º, ao enumerar os objetivos fundamentais da República, destaca a garantia do desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais. O cenário político atual compromete todos esses valores.

Adilson Abreu Dallari

Está muito difícil ler jornal. Para combater o presidente, que estancou a sangria de dinheiro público para empresas jornalísticas e jornalistas, vale qualquer pretexto, como trabalho infantil, agrotóxicos, ideologia e educação, “paraíba”, nepotismo, meio ambiente, deportação de estrangeiros perigosos e, agora, os mil desdobramentos da atuação criminosa dos hackers. O insuspeito ministro Roberto Barroso, numa palestra em São José dos Campos no último dia 2, usou a expressão mais correta para definir essa situação: “É muito impressionante a quantidade de gente que está eufórica com os hackeadores. Celebrando o crime. E, na minha percepção, há mais fofoca do que fatos relevantes, apesar do esforço de se maximizarem esses fatos”.

O também insuspeito e notável mestre Ives Gandra da Silva Martins, em artigo publicado na ConJur de 31 de julho, observou: “Começo a ficar intolerante com os que se alegram com o fracasso do país e que se vangloriam em ver a nação afundar por força de suas, quase sempre, infundadas críticas”. “Consumo minha dose de irritação com o desenvolver dos acontecimentos e por ver que a periferia do que é relevante é sempre a matéria de maior destaque nas manchetes jornalísticas. Toda a verdade deve ser apurada. Entendo, todavia, que os brasileiros deveriam dar aos fatos conhecidos a sua devida relevância, sem riscos de manipulação, seja pelos criminosos cibernéticos, seja pelas autoridades dos Três Poderes, pela mídia, por partidos políticos ou pelos formadores de opinião.”

Um assunto que não está sendo tratado com a devida seriedade ou com a atenção que merece é o retorno da antiga tese sobre a internacionalização da floresta amazônica. Não por acaso, em diversos pronunciamentos, ao ser questionado por jornalistas estrangeiros, o presidente Bolsonaro tem dito e repetido, logo na primeira frase da resposta, que a Amazônia pertence ao Brasil. Ele tem motivos para isso.

Sem muito esforço, com uma simples consulta à Wikipedia, poderá ser constatada a presença de muitas ONGs estrangeiras na região amazônica, supostamente cuidando do meio ambiente e dos indígenas, mas sempre questionando a soberania do Brasil sobre o que chamam de patrimônio da humanidade. Para ilustrar, vale a pena transcrever alguns pronunciamentos de conhecidos líderes mundiais, desde longa data:

Al Gore (1989): “Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós”;

François Mitterrand (1989): “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia”;

Mikhail Gorbachev (1992): “O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes”;

John Major (1992): “As nações desenvolvidas devem estender o domínio da lei ao que é comum de todos no mundo. As campanhas ecológicas internacionais que visam à limitação das soberanias nacionais sobre a região amazônica estão deixando a fase propagandística para dar início a uma fase operativa, que pode, definitivamente, ensejar intervenções militares diretas sobre a região”.

Uma ponta de lança para essa invasão é a questão dos indígenas em geral, mas, para exemplificar, basta um olhar para o chamado território Yanomami. Consulte-se o site www.survivalbrasil.org, sucursal da Survival Internacional, entidade dedicada à defesa dos povos indígenas no mundo, para constatar que esse território Yanomami abrange vários Estados nacionais: Brasil, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia. Transcrevo: “Com mais de 9,6 milhões de hectares, o território Yanomami no Brasil é o dobro do tamanho da Suíça. Na Venezuela, os Yanomami vivem na Reserva da Biosfera Alto Orinoco-Casiquiare, de 8,2 milhões de hectares. Juntas, essas regiões formam o maior território indígena coberto por floresta em todo o mundo. Milhares de garimpeiros trabalham ilegalmente em terras Yanomami, transmitindo doenças mortais como a malária e poluindo os rios e as florestas com mercúrio. Pecuaristas estão invadindo e desmatando a fronteira leste de suas terras”.

Com esse pano de fundo, agora é possível entender a transcrição de um artigo da revista The Economist, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, de 1º de agosto, com o expressivo título “Velório para a Amazônia”. Depois de demonstrar, por a + b, cientificamente, que o significado ecológico da Amazônia transcende os interesses brasileiros, chega às abusadíssimas ameaças que se transcrevem: “O presidente brasileiro rejeita essas conclusões, como faz com a ciência de modo geral. E acusa os estrangeiros de hipocrisia — os países ricos não derrubam suas próprias florestas? E às vezes utilizam o dogma ambiental como pretexto para manter o Brasil pobre, disse ele. ‘A Amazônia é nossa’, afirmou recentemente. Para o presidente, o que ocorre na Amazônia brasileira é problema do Brasil. Mas não é. Uma ‘morte’ afetará diretamente os sete outros países com os quais o Brasil compartilha a bacia ribeirinha. Por todas essas razões, o mundo tem de deixar claro para Bolsonaro que não vai tolerar seu vandalismo”. Ninguém é ingênuo para achar que isso é uma voz isolada; que não existe uma articulação internacional.

Essa agressividade aumentou muito no momento em que o governo deixou de fechar os olhos para a violência e o descaso com a Amazônia e está pretendendo regularizar o garimpo, a mineração e a exploração econômica das riquezas lá existentes, inclusive em benefício das populações indígenas. Em síntese, o Brasil está começando a se preocupar com o domínio útil da Amazônia, para fortalecer sua soberania. Neste passo é preciso verificar como o Direito brasileiro cuida dessa questão.

A CF, no artigo 20, ao elencar os bens de domínio da União, cuida desses assuntos, mencionando: “IX – os recursos minerais, inclusive os do subsolo; XI – as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. No artigo subsequente, 21, afirma que compete à União “XXV – estabelecer as áreas e as condições para o exercício da atividade de garimpagem, em forma associativa”. O tema é retomado no artigo 174, que dispõe sobre o desenvolvimento das atividades econômicas em geral, do papel subsidiário do Estado e dispõe sobre garimpo, juntamente com a proteção ao meio ambiente: “§3º. O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros”. Fique claro, portanto, que o garimpo é uma atividade econômica lícita, amparada pelo texto constitucional.

Registre-se apenas a existência de um Estatuto do Garimpeiro, estabelecido pela Lei 11.685, de 2/6/2008, que, em modestos 20 artigos, disciplina o exercício dessa atividade econômica, suas várias modalidades, as formas associativas, os direitos dos profissionais e seus deveres: “Art. 12. O garimpeiro, a cooperativa de garimpeiros e a pessoa que tenha celebrado Contrato de Parceria com garimpeiros, em qualquer modalidade de trabalho, ficam obrigados a: I – recuperar as áreas degradadas por suas atividades; II – atender ao disposto no Código de Mineração no que lhe couber; e III – cumprir a legislação vigente em relação à segurança e à saúde no trabalho”.

Essa atividade pode ser exercida em todo o território nacional, restando verificar suas implicações com as terras indígenas, em face de expressa limitação estabelecida pela Constituição, no artigo 231, que se passa a examinar.

O texto constitucional afirma, com vigor e clareza, os direitos dos índios, bastando, para os fins deste estudo, transcrever o artigo 231 e seu parágrafo 1º: “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. §1º. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. §3º cuida expressamente da pesquisa e lavra de recursos minerais: “§3º. aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.

O fato é que os índios são bastante amparados pela Constituição e são ainda muito mais protegidos pela legislação ordinária, especialmente pela Lei 6.001, de 19/12/1973, que estabelece o Estatuto do Índio, em 68 artigos, a maioria dos quais cuida Das Terras dos Índios (Título III). Em síntese, os índios são cidadãos brasileiros, com todos os direitos e garantias, com a isenção de alguns deveres e proteção especial no tocante a certas situações, serviços e atividades públicas. O que se pretende dizer é que a ordem jurídica brasileira é extremamente cuidadosa para com os direitos dos índios, não havendo risco algum de que o exercício lícito da garimpagem em terras indígenas possa representar algum perigo para essas populações.

O grande problema está no exercício ilegal, arbitrário, abusivo e violento da garimpagem e da mineração em terras indígenas, conforme vem sendo denunciado pela imprensa e por ONGs estrangeiras. A exploração clandestina apresenta, sim, riscos ambientais e sociais. O governo brasileiro acordou para o problema, conforme reportagem de Mariana Haubert e Anne Warth publicada em O Estado de S. Paulo, de 2 de agosto, que se transcreve parcialmente: “De acordo com o secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia, Alexandre Vidigal, o objetivo das mudanças é aproveitar as riquezas minerais beneficiando quem realiza a atividade, dentre eles, os garimpeiros e os próprios índios. O modelo de aproveitamento, no entanto, ainda não foi definido pelo Executivo”. Afirmou o secretário: “Nosso pensamento não é dar um salvo-conduto para situações que sejam maléficas à coletividade. O que queremos é que nessa relação, a exploração seja do mineral, não dos envolvidos, não dos garimpeiros, não dos índios”. Há um grupo de trabalho, criado em 2017, formado pelo Ministério de Minas e Energia, Ministério do Meio Ambiente, Casa Civil, Funai e Ibama, que deve apresentar um anteprojeto de lei tratando especificamente da mineração em terras indígenas.

As riquezas minerais provavelmente existentes devem ser descobertas e exploradas, de maneira disciplinada pela lei, inclusive em terras indígenas. É preciso evitar episódios como o espetáculo vergonhoso de Serra Pelada. Um bom exemplo, entretanto, é o da descoberta de Carajás. Recomenda-se a leitura do livro Carajás: A Descoberta, edição do autor, Erasto Boretti de Almeida, geólogo que participou de todas as etapas do trabalho de campo que levou ao descobrimento de uma das maiores províncias minerais do planeta. Dessa obra, transcrevo o epílogo: “O aproveitamento dos recursos minerais de uma região é diretamente proporcional ao conhecimento de sua geologia. A mineração é fundamental para a qualidade de vida de toda a humanidade. Não há como desfrutarmos do desenvolvimento tecnológico conseguido pelo homem sem o uso de recursos minerais. Um exemplo da importância dos produtos minerais é a designação das fases da evolução da humanidade baseada no uso de produtos minerais: Idade da Pedra Lascada, Idade da Pedra Polida, Idade do Bronze, Idade do Ferro, Idade do Aço, e atualmente poderíamos falar da ‘Idade do Silício'”.

Em síntese, a exploração de recursos minerais das terras indígenas está perfeitamente prevista na Constituição Federal e na legislação ordinária, faltando apenas a disciplina detalhada dessa específica atividade. O tema não deve ser objeto de escândalo, de especulação política e de desinformação pela imprensa. Está em jogo a soberania nacional.

FONTE: Revista Consultor Jurídico, 8 de agosto de 2019. Por Adilson Abreu Dallari

Adilson Abreu Dallari é professor titular de Direito Administrativo pela PUC-SP e consultor jurídico.

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