18 de maio de 2019
Por Pedro Camara Raposo-Lopes
O presente escrito não possui pretensões doutrinárias, razão pela qual não haverá notas de rodapé, tampouco citações dos luminares que se debruçaram sobre o Direito Minerário.
É apenas o resultado de algumas reflexões despretensiosas de um operador do Direito que teve a oportunidade de judicar durante muitos anos em comarcas cujas populações foram diretamente impactadas por anos de atividade minerária desenvolvida sob o guante de normas que merecem urgente revisão, tendo em vista as recentes tragédias que tocaram Mariana (2015, rompimento da barragem de Fundão), Brumadinho (2019, rompimento da barragem de Córrego do Feijão) e, mais remotamente, Itabirito (1986, rompimento da barragem de Fernandinho), Nova Lima (2001, rompimento da barragem de Macacos), Cataguases (2003, rompimento da barragem de Cataguases), Miraí (2007, rompimento da barragem de Rio Pomba) e, novamente, Itabirito (2004, rompimento da barragem de Herculano).
Para além do necessário debate sobre novos métodos de tratamento e destinação do rebotalho da atividade minerária, por si só causadora de relevante impacto ambiental, bem assim do destino que deva ser dado aos depósitos de rejeitos de minério já existentes em níveis alarmantes, é absolutamente urgente a formulação de toda uma nova tessitura normativa, partindo-se da premissa da alteração dos vetores axiológicos que serviram de alicerce para a construção do arcabouço legislativo minerário atualmente vigente no país.
Tal legislação, se por um lado mostrou-se conveniente aos interesses empresariais de poucos, por outro lado mostrou-se perversa aos interesses de miríades de habitantes de comunidades situadas em áreas de mineração, como demonstrou a funesta prática.
E tais reflexões independem, é preciso que se registre de logo, das eventuais posturas políticas que podem ser adotadas em relação à mineração enquanto atividade econômica orientada ao lucro, ou ao atendimento das necessidades primárias do Estado.
Direito Administrativo Brasileiro
É que o Direito Minerário foi todo ele erigido sob o influxo do princípio da supremacia do interesse público, pedra angular do Direito Administrativo brasileiro, e que, por seu turno, funda-se na premissa (que de resto se mostrou equivocada) segundo a qual a pesquisa e a lavra minerárias sempre atendem ao “interesse nacional”, conforme consta na redação do parágrafo 1º do artigo 176 da Constituição Federal.
O que se tem visto, todavia, é que a atividade minerária, ao longo de séculos, vem atendendo mais a interesses privatísticos do que propriamente ao “interesse nacional”, e isso desde quando as riquezas minerais pertenciam à Coroa e constituíam a base do “sistema regaliano”, por meio do qual o interesse do Império não era outro senão a cobrança do “quinto” ou do “dízimo”.
Esse sistema arcaico foi substituído, sem alterações substanciais, pelo “sistema dominial republicano”, que é o que vem se perpetuando desde a Constituição de 1934 (artigo 118). O que se alterou foi tão somente o destinatário da proteção legislativa: se antes eram os interesses régios os protegidos, hoje são os das companhias mineradoras.
E mesmo no Direito Administrativo o princípio vem sendo questionado, conforme dão conta percucientes estudos. Por todas, menciono a obra coletiva Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público, organizada pelo eminente constitucionalista fluminense Daniel Sarmento (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007).
Sucede que o princípio da supremacia do interesse público, que justificaria a intervenção estatal no domínio privado e as medidas de polícia administrativa, parte de pressuposto muito diverso, que é o do “direito do maior número”, o qual autorizaria a imposição de restrições e até de supressões de atividades e de bens dos particulares, sempre na medida em que tais imposições e supressões pudessem servir ao interesse da coletividade.
Tal não ocorre, todavia, na atividade minerária, toda ela desenvolvida com vistas ao fomento de atividade econômica empresarial e que, só indiretamente, por meio da arrecadação de tributos e de preços públicos, atende ao interesse primário do Estado.
Alterada, portanto, a premissa, já não mais se justificarão, a fortirori, drásticas intervenções patrocinadas por entidades privadas na esfera daqueles que, não sendo superficiários, tornam-se coadjuvantes involuntários de egoísticos interesses empresariais, apenas porque residem nas circunvizinhanças de uma mina ou dos locais onde estejam alocados equipamentos necessários ao atendimento das necessidades do empresário-concessionário.
Modernamente, portanto, sobretudo depois de tantas e sucessivas tragédias, o epicentro axiológico do sistema normativo deve ser revisto, refluindo para o princípio da dignidade da pessoa humana, erigido à condição de fundamento da República (artigo 1º, inciso III da Constituição).
Tradicionalmente, aponta-se o “direito de prioridade”, de que trata o artigo 11 do vetusto Código de Mineração (Decreto-lei 227, de 1967), como a mais proeminente manifestação do princípio da igualdade, como se todo o subsolo nacional já não estivesse adrede mapeado pelas grandes companhias mineradoras. A prioridade vem servindo mais a imperativos especulatórios do que à satisfação dos interesses da coletividade.
Enquanto não sejam promovidas alterações substanciais no marco regulatório, mediante a percepção do solapamento de premissas que nunca se traduziram em realidade, a legislação vigente já permite, de logo, pelo menos o estabelecimento de novos paradigmas hermenêuticos que se fundem na dignidade da pessoa humana.
Seguem, a título de exemplo, algumas sugestões de índole prática.
Uma vez ultimados os trabalhos de pesquisa e providenciado o necessário relatório circunstanciado, mostra-se conveniente que o plano de aproveitamento econômico (CM, artigo 39), antes de ser submetido ao Poder concedente, deva ser levado ao conhecimento da comunidade afetada, que, organizada em associações ou fundações, teria, no processo de concessão de autorização, poder decisório.
Cuida-se, a participação comunitária, de importante instrumento de gestão democrática que deve fazer parte do plano de concessão de outorga, e por meio do qual os munícipes, ciente dos riscos e das vantagens do empreendimento, poderiam, na forma de seus estatutos e com poderes decisórios:
a) aquiescer com o empreendimento: nesta hipótese, toda a área a ser impactada, individualizadas as moradias, estabelecimentos privados e equipamentos públicos, seria incluída em área de servidão coletiva e faria jus, independentemente da demonstração de prejuízo, ao percebimento de renda a ser objeto de rateio, mediante a instituição de fundo específico administrado pela associação ou fundação comunitária. A renda seria objeto de acordo anterior à outorga, ou, em caso de divergência, estabelecida pelo procedimento judicial a que se refere o artigo 27 do CM, em qualquer hipótese tomando-se por base o decréscimo estimado do rendimento líquido das propriedades produtivas situadas na área serviente.
b) discordar do empreendimento: nesta hipótese, o poder público, atento às ponderações lançadas na ata, poderia proceder ao “bloqueio minerário” da área, na forma do artigo 42 do CM, ou, discordando das razões invocadas pela comunidade, conceder a lavra, desde que mediante prévio reassentamento dos munícipes (“realocação”).
Evidentemente que não se pode descartar a hipótese de algum membro da comunidade discordar da realocação compulsória. Neste caso, independentemente das razões invocadas, faria jus à “desapropriação minerária” a que se refere o artigo 2º, inciso XXI da Lei 13.575, de 2017, a se efetivar mediante justa e prévia indenização em dinheiro.
Mostra-se ainda imperiosa a alteração da sistemática de distribuição da parcela da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) destinada aos municípios.
A destinação, nos moldes em que vem sendo realizada, constitui uma verdadeira caixa-preta, servindo, não raras vezes, para a promoção de agentes públicos, incremento do patrimônio pessoal e também para o custeio de despesas vedadas por lei — pagamento da dívida e pessoal, por exemplo (Lei 7.990, artigo 8º).
A jurisprudência administrativa narra pitorescos casos de tredestinação dos recursos da CFEM, como custeio de sepultamento, velórios, locação de veículos, festividades e torneios de futebol.
Se o controle de gastos públicos, em se tratando de CFEM, já é tormentoso, a realocação do superavit experimentado no curso do exercício é ainda mais nebulosa. A prática demonstra que as previsões orçamentárias de arrecadação são amiúde subestimadas vis a vis o efetivamente realizado.
O controle de aplicação das diferenças é muito difícil e se abre a práticas pouco republicanas.
Sugere-se, de lege ferenda, que os recursos sejam destinados à própria comunidade diretamente impactada, que os administrará por meio de associações ou fundações fiscalizadas pelo Ministério Público, e que os aplicaria em projetos ligados à saúde, educação, saneamento básico e qualidade ambiental.
Sugere-se que seja imposto aos concessionários, como condição à outorga, a contratação compulsória de seguros que cubram riscos de catástrofes, visando a segurar os bens públicos e as propriedades privadas potencialmente atingidas, com prévia submissão das condições da apólice e dos limites de retenção da seguradora eleita à Susep, que teria poderes de propor alterações ou de impor à seguradora a contratação de ressegurado como condição necessária à celebração do contrato.
Enfim, são essas apenas algumas sugestões que lanço à guisa de modesta contribuição para um necessário debate que se mostra urgente, e que faço ainda durante o luto da tragédia humanitária sem precedentes de Brumadinho.
FONTE: Revista Consultor Jurídico – CONJUR
Pedro Camara Raposo-Lopes é juiz de Direito da 33ª Vara Cível de Belo Horizonte, pós-graduado em Direito de Empresas pela PUC-Rio e graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Foi procurador e procurador-geral adjunto da Fazenda Nacional, além de procurador regional da Fazenda Nacional da 1ª Região