30 de dezembro de 2018
Por Letícia Yumi Marques
Mais do que posicionar os fatos relevantes de 2018 para o direito ambiental em linha cronológica, o importante é analisá-los para buscar entender o que eles, em conjunto, têm a dizer sobre os caminhos que o direito ambiental seguiu no último ano e, daí, identificar possíveis pistas sobre o que esperar para 2019.
O primeiro acontecimento de grande destaque foi o julgamento das ações sobre a constitucionalidade do Código Florestal (Lei Federal 12.651/12) pelo Supremo Tribunal Federal. Durante as sessões de julgamento, ganhou força a tese da “vedação da proteção insuficiente”, que ofereceu uma leitura menos radical (alguns dirão mais flexível) do princípio da proibição ao retrocesso. Já no Superior Tribunal de Justiça, duas novas súmulas foram editadas: a de número 613, sobre a inaplicabilidade da teoria do fato consumado (ratificando o entendimento de que inexiste direito adquirido contra o meio ambiente), e a de número 618, a respeito da inversão do ônus da prova em ações de degradação ambiental. Ambas as súmulas privilegiam o meio ambiente e são bastante polêmicas.
A questão animal também foi destaque durante o ano de 2018. No estado de São Paulo, onde a caça foi proibida (Lei Estadual 16.784/18), ocorreu uma grande manifestação de ativistas no Porto de Santos contra a exportação de gado vivo. Diversas ações civis públicas foram ajuizadas para requerer que a exportação de carga viva fosse impedida e, em parecer[1] acostado aos autos, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), por meio de sua procuradoria, pronunciou-se pela inexistência de maus tratos nessa prática.
Ainda sobre maus tratos, vale registro o início do julgamento, pelo STF, da validade do Código Estadual de Proteção aos Animais do Rio Grande do Sul (Lei Estadual 11.915/2003), que trata do sacrifício de animais em ritos das religiões de matriz africana[2]. Antes da suspensão do julgamento, em decorrência do pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes, formava-se o entendimento de que a prática seria permitida, desde que o animal não sofresse maus-tratos durante o abate, resguardando a liberdade de crença e a cultura afro-brasileira.
Houve novidades também com relação ao licenciamento ambiental de atividades potencialmente poluidoras ou utilizadoras de recursos naturais. Isso se deu não diretamente, mas por outras normas com reflexo nesse procedimento. Por exemplo: a Resolução Conama 491/2018, que consiste em uma versão atualizada da antiga norma sobre poluição atmosférica, determinou padrões progressivos de qualidade do ar a serem seguidos por empreendedores e fiscalizados por órgãos ambientais também no âmbito do licenciamento.
Outros fatores como reserva legal e logística reversa também foram incorporados ao licenciamento ambiental, ao menos no estado de São Paulo[3], fazendo com que, para ter sua atividade licenciada, o empreendedor comprove o atendimento de um número cada vez maior de aspectos da legislação ambiental, de forma integrada.
A análise dos fatos ocorridos em 2018 mostra que, embora haja iniciativas mais arrojadas voltadas, neste primeiro momento, à proteção dos animais, o direito ambiental brasileiro, sua construção legislativa e sua aplicação permanecem distantes do ecocentrismo e de outros valores defendidos pelo ambientalismo mais radical.
Esse distanciamento ficou evidente quando o STF, no julgamento da constitucionalidade do Código Florestal, adotou a tese da “vedação da proteção insuficiente” como um dos fundamentos da validade da redução das áreas de preservação permanente em relação à lei anterior, de 1965. Essa tese é considerada uma leitura menos radical do princípio da vedação ao retrocesso e contrasta fortemente com a jurisprudência do STJ, onde esse princípio tem aplicação majoritariamente preservacionista e, portanto, inflexível. Tal divergência foi equacionada com o posicionamento final do STF, que demonstra que a redução da proteção ambiental dentro de um limite mínimo é legítima e acolhida pelo Estado. Esse pensamento afasta o direito ambiental do ecocentrismo, cujos valores e princípios de preservação ambiental, segundo Graham Smith[4], são “imperativos não-negociáveis”.
O acontecimento seguinte mostra que, para além de afastar o ecocentrismo e a ideia de que a manutenção do equilíbrio ecológico tem, por si só, mais relevância do que seres humanos e suas criações, o direito ambiental brasileiro mantém uma natureza antropocentrista. É o que se observa a partir do julgamento (ainda não concluído pelo STF) da validade do Código Estadual de Proteção aos Animais do Rio Grande do Sul, pelo qual se entendeu, até o momento, que o abate de animais em rituais de sacrifício em religiões de matriz africana não constitui, por si só, maus tratos e que deve ser permitido e resguardado como expressão cultural e religiosa afro-brasileira.
Além do viés antropocêntrico, o caráter liberal do direito ambiental brasileiro também é marcante na questão da fauna, como se observa no caso da exportação de gado vivo, prática que também não foi considerada maus-tratos pelo IBAMA. Para Mark J. Smith[5], o pensamento liberal não reconhece obrigações dos indivíduos para com seres não-humanos e, em ambos os casos (exportação de gado vivo e sacrifício de animais em rituais religiosos), os desejos humanos, sejam eles econômicos ou culturais, prevaleceram sobre aquilo que poderia ser considerado melhor para os seres não-humanos. Até mesmo ações como a proibição da caça podem não ser entendidas como iniciativas autenticamente preservacionistas ou ecocentristas, mas conservadoras. Isto, porque, a proteção estendida aos animais não os coloca no mesmo patamar de seres humanos, mas, em vez, disso, restringe-se a garantir a manutenção de um equilíbrio ecológico sem o qual a existência humana e a sua qualidade de vida podem ser comprometidas. Ou seja: a conservação dos animais serve aos interesses do homem, não sendo um fim em si mesmo. Não existe, na legislação ambiental brasileira, igualdade biocêntrica entre seres humanos e não-humanos.
Já o licenciamento ambiental agrega, a cada ano, mais e mais elementos que tornam o processo cada vez mais complexo e completo, associando-o à visão holística segundo a qual o todo (licenciamento de atividade) é mais relevante que as partes (logística reversa dos resíduos decorrentes do consumo dos seus produtos ou a emissão atmosférica de suas fábricas). Esses demais temas não são novidades, mas o que se torna nítido é que, cada vez mais, esses aspectos serão analisados no conjunto da atividade e não de forma isolada.
Todo o conjunto dos acontecimentos mais relevantes de 2018 insere o direito ambiental brasileiro no chamado “ecologismo superficial” ou “ecologismo humanista”, que, para Andrew Heywood[6], concentra as seguintes características principais: antropocentrismo, holismo moderado, preservação de seres não-humanos sem igualdade biocêntrica, natureza como valor instrumental e não como valor em si mesma e crescimento sustentável em vez de decrescimento.
Independente de quaisquer juízos de valor a respeito de qual seria a visão mais acertada do ponto de vista ético e moral, o exercício de diagnosticar o que move a construção legislativa e a aplicação das leis ambientais possibilita uma melhor compreensão do momento que o direito ambiental atravessa e para onde ele se encaminha. Embora seja consenso que o momento seja de transição de consciência ecológica, o viés preponderantemente ecocêntrico não chegará – se um dia chegar – em 2019.
[1] Parecer 00017/2018/COJUD/PFE-IBAMA-SEDE/PGF/AGU (Ação Civil Pública 5000028-53.2018.4.03.6135 – Vara Federal de Caraguatatuba/SP).
[2] Recurso Extraordinário 494601-RS. Relator: Min. Marco Aurélio.
[3] CETESB – Decisão de Diretoria 076/2018/C, de 03 de abril de 2018.
[4] SMITH, Graham. Deliberative Democracy and Environment. Routledge; 1ª edição, 2003, p. 67.
[5] SMITH, Mark J. Trad. Lígia Teopisto. Manual de Ecologismo. Rumo à Cidadania Ecológica. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 76.
[6] HEYWOOD, Andrew. Trad. Janaina Marcoantonio. Ideologias Políticas. Do feminismo ao multiculturalismo. São Paulo: Editora Ática, 2010, p. 51.
FONTE: CONJUR 30/12/2018
Letícia Yumi Marques é consultora da área de Direito Ambiental do Peixoto & Cury Advogados, professora universitária e mestranda em Sustentabilidade na Universidade de São Paulo (USP).