-Decisão cabe aos que foram eleitos
-Proteção ambiental não será menor
-Mas haverá previsibilidade jurídica
GOVERNO NÃO É NOVELA
Problemas da fusão dos ministérios são mais político-comerciais do que de proteção ambiental
Certamente, não surpreendeu ninguém que o assunto da semana fosse a eleição de Jair Bolsonaro para presidente, bem como cada uma das medidas que propõe para seu futuro governo. Também não é novidade que suas falas e propostas serviriam de combustível para os ressentimentos –mais ou menos legítimos– de quem perdeu as eleições. Juntando tudo isso com a dimensão que a internet dá aos temas, temos o caldo perfeito para nos desviarmos do foco dos assuntos e nos perdermos nos labirintos que a histeria edifica.
Entre esses temas, gostaria de chamar a atenção para um: a possível fusão entre o Ministério do Meio Ambiente e o da Agricultura.
Bolsonaro já havia demonstrado intenção de fundir as duas pastas durante a campanha, o que demonstra coerência entre o discurso eleitoral e o programado governamental. Apesar disso, ao ser dito por membros de sua futura equipe que isso poderia ser levado ao cabo, o enredo de sempre veio à tona: petição pública, ameaça de judicialização, notas, notas e notas e, como não poderia faltar, vídeos de artistas e modelos.
Pouca gente, no entanto, colocou a bola no chão e decidiu discutir o tema. Sem grandes pretensões, é o que gostaria de fazer aqui.
Antes de mais nada, gosto muito de uma expressão latina: ne sutor ultra crepidam (“sapateiro, não [vá] além do sapato”), isto é, devemos ter cuidado ao nos manifestarmos sobre os assuntos acerca dos quais não temos tanto conhecimento. Ela se aplica especialmente ao conhecido recurso dos últimos tempos: se existe alguma polêmica, encontre um famoso para lhe fazer um vídeo, ainda que ele não saiba nada sobre o que está dizendo.
Justamente por isso, gostei tanto de uma entrevista da cantora Ivete Sangalo na qual, de maneira singular em seu meio, diz: “Quando fui escolhida para ser uma pessoa pública, foi para ser cantora, não para opinar acerca de temas sobre os quais não tenho conhecimento”.
Voltando ao assunto, a fusão entre os ministérios não é o mais importante no tema. Para identificar o que realmente importa, vamos aos argumentos (daqueles que realmente os têm).
O governo eleito está correto ao dizer que há um problema na relação entre o setor produtivo e os processos de licenciamento e de fiscalização ambiental. Há muita burocracia, o que sempre prejudica quem age de acordo com a lei e beneficia o malfeitor, seja pela demora, seja pelo que revela um famoso ditado espanhol: Hecha la lei, hecha la trampa, ou seja, feita a lei, feita a armadilha, isto é, um modo de burlá-la.
Regras simples e claras beneficiam os que vão cumpri-las; já os processos complexos retiram a clareza das exigências. Com isso, prejudicam os sérios e servem de subterfúgios para os desonestos.
Foi nesse sentido que a França promoveu, a partir de 2017, uma simplificação de seu processo de licenciamento ambiental, por meio de uma única autorização. A proposta buscou cumprir 3 objetivos:
a- simplificação do procedimento (sem diminuir o nível da proteção ambiental);
b -uma visão melhor de todas as questões ambientais envolvidas num projeto;
c -previsibilidade jurídica para o proponente do projeto.
De forma bem sucinta: na França o empreendedor tem enorme responsabilidade sobre o projeto. Lá, as regras são claras e ele indica se as está cumprindo. Caso haja fraude, as penas serão duríssimas, especialmente o embargo do projeto.
É assim que funciona nos países em que a administração pública funciona: o empreendedor sabe as regras que tem que cumprir, declara que as cumpriu, e, caso esteja mentindo, pagará caro por isso.
Para o cidadão de bem, é uma maravilha, para aquele que não reconhece os custos da vida em sociedade, tolerância zero.
O governo eleito, assim, pretende mudar um comportamento institucional nocivo ao empreendedorismo brasileiro: atualmente, criamos uma série de entraves para o desenvolvimento de atividades produtivas para evitar, antecipadamente, que alguém cometa ilegalidades, pois pressupomos que, se alguém vier a descumprir a lei, isso não terá consequências.
Portanto, quando o presidente eleito indica que devemos acabar com a “indústria de multas” ambientais, ele está correto, ainda que a expressão não seja a melhor. Não existe –e não acho que Bolsonaro pense isso– uma organização institucionalizada para multar os empreendedores, e, especialmente, os agropecuaristas brasileiros.
O que, de fato, há são normas ambientais, fartas em cláusulas gerais e em conceitos jurídicos indeterminados, que deixam uma margem muito ampla para a discricionariedade dos agentes públicos fiscalizadores. Para funcionarem, regras jurídicas devem ser claras, e os agentes fiscalizadores cumpri-las de maneira estrita e minuciosa.
De outro lado, o atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi, levanta pontos pragmáticos e importantes. Ele teme que a fusão traga problemas aos produtos brasileiros no competitivo mercado global. Embora tais medidas, se implementadas, significassem flagrante injustiça contra o Brasil, o ministro Blairo tem razão.
Todos sabemos que somos o país mais competitivo em produção agropecuária no mundo. Apesar de todos os nossos entraves logísticos, tributários e burocráticos é onde se produz alimento, fibra e energia com os menores custos. Por essa razão, somos, frequentemente, alvo de políticas protecionistas, implementadas por países que pretendem salvaguardar seus produtos agropecuários.
Nesse sentido, embora a fusão entre o Ministério do Meio Ambiente e o da Agricultura, por si só, jamais pudesse ser, com justiça, argumento para a imposição de uma barreira não tarifária, ela, indiscutivelmente, poderia ser usada de uma maneira oportunista para impedir o ingresso de produtos brasileiros em “parceiros” comerciais. Ainda que uma medida assim provavelmente fosse revertida, isso poderia levar meses, causando prejuízos enormes. O problema, aqui, é mais político-comercial que de proteção ambiental.
Outro ponto que deve ser levado em questão é a eficácia da medida para a finalidade pretendida. Se queremos tornar mais eficiente nossa produção agropecuária, será que trazer para o Ministério da Agricultura temas tão diversos dele (o licenciamento de obras de infraestrutura, da mineração etc.) faria sentido? Isso poderia ser resolvido, sob o ponto de vista administrativo, com secretarias ministeriais robustas e eficientes. Contudo, o ministro da Agricultura ainda continuaria a ser demandado politicamente por esses assuntos, o que, em tese, poderia dragar seus esforços para o comando das atividades estratégicas do agronegócio. Aqui, o problema é mais político-administrativo que de defesa do meio ambiente.
Portanto, quando deixamos a espuma abaixar, vemos que a maioria das informações veiculadas nessa última semana decorrem apenas de ranço ideológico ou de oportunismo da oposição.
A fusão, caso realizada, não representaria, por si só, qualquer retrocesso na proteção ambiental brasileira, e a sua (in)conveniência deve ser analisada por aqueles que receberam o mandato do órgão soberano (o povo) mediante o voto popular.
Para concluir, independentemente de onde estejam alocados, penso que o principal papel dos órgãos ambientais brasileiros, além dos já realizados (prevenção e fiscalização), seja o da diplomacia ambiental.
Precisamos mostrar ao mundo que o Brasil preserva mais de 66% de sua cobertura vegetal nativa, que 25% dela está nas propriedades rurais privadas, que somos um dos mais eficientes no aproveitamento de recursos naturais, que temos a maior produção de energia limpa e renovável do globo, entre inúmeros índices de altíssima performance socioambiental.
E, aí sim, poderíamos dispor de artistas para um material publicitário de alto nível. Afinal, fotografados e interpretando, eles são insuperáveis.
Fonte: Poder 360 por EVANDRO GUSSI 03.nov.2018
LEIA MAIS: