Os tribunais de contas e o licenciamento ambiental de obras públicas
A Constituição Federal de 1988 procurou consolidar as atribuições e a independência dos tribunais de contas enquanto órgãos de controle externo responsáveis pela apreciação das contas dos entes e órgãos públicos. Além de verificar a questão contábil, financeira, orçamentária e patrimonial propriamente ditas, tais cortes observam também critérios de legalidade, legitimidade, economicidade e operacionalidade na fiscalização das pessoas físicas ou jurídicas que responsam ou que assumam obrigações em nome do poder público.
Além do Tribunal de Contas da União, há no Brasil 26 tribunais de contas estaduais, um Tribunal de Contas do Distrito Federal, três tribunais de contas estaduais dos municípios (Bahia, Goiás e Pará) e dois tribunais de contas municipais (Rio de Janeiro e São Paulo). Essas cortes possuem atuação, estrutura e responsabilidades semelhantes, pois existe certa simetria no seu modo de agir em razão da fundamentação constitucional comum.
Como o objetivo do presente artigo é analisar o papel dos tribunais de contas no que diz respeito ao licenciamento ambiental, é importante destacar que essas cortes também possuem atribuições em matéria de meio ambiente. Ao dispor sobre a obrigação do poder público de proteger o meio ambiente, o caput do artigo 225 da Constituição Federal não quis restringir essa obrigação ao Poder Executivo ou a algum órgão específico, pois esse é um dever que perpassa qualquer Poder ou órgão na medida de suas atribuições e possibilidades.
Em se tratando especificamente do licenciamento ambiental, que é apontado por parte significativa da doutrina como o mais importante instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, é claro que existe um papel relevante a ser cumprido. É que, de acordo com o artigo 10 da Lei 6.938/81, toda atividade efetiva ou potencialmente poluidora está sujeita ao licenciamento ambiental prévio para poder se instalar e operar, independente de ser de responsabilidade da administração pública ou da iniciativa privada.
O licenciamento ambiental deve ser compreendido como o processo administrativo no decorrer ou ao final do qual a licença ambiental poderá ou não ser concedida pelo órgão ambiental competente, seja ele federal, estadual ou municipal. O artigo 19 do Decreto 99.274/90 dispõe que em regra o processo se desdobra em três etapas, devendo cada uma dessas três etapas culminar com a concessão do ato administrativo compatível, que no caso é a Licença Prévia, a Licença de Instalação e a Licença de Operação.
A ausência ou o descumprimento dos termos da licença ambiental é responsabilizável administrativa e criminalmente nos termos do Decreto 6.514/2008 e do artigo 60 da Lei de Crimes Ambientais, a despeito de ter ou não ocorrido dano ao meio ambiente. Impende dizer que por atividade sem licença ambiental se compreende também aquelas cuja licença se venceu ou cujos limites foram extrapolados, pois em ambas as situações a falta da chancela legal é inquestionável.
A ideia de licenciamento ambiental está ligada a uma presunção legal de regularidade ambiental: parte-se do pressuposto de que a atividade licenciada não degrada, e de que a atividade não licenciada degradada. Cuida-se, obviamente, de um juízo relativo, como, aliás, é toda presunção jurídica, uma vez que na prática os seguintes casos podem acontecer: i) a atividade não licenciada obedece aos padrões de qualidade ambiental, ii) a atividade licenciada não cumpre as condicionantes (hipótese mais comum) e iii) a atividade licenciada cumpre as condicionantes mas gera degradação ambiental mesmo assim.
No Brasil a administração pública é responsável por um número significativo de atividades sujeitas ao licenciamento ambiental, haja vista o tamanho da presença do Estado na economia nacional. É o caso das obras públicas, as quais causam ou que podem causar impactos ao meio ambiente e que por isso devem buscar a chancela dos órgãos ambientais.
Se não há diferença entre uma obra pública e uma obra privada no que diz respeito ao licenciamento ambiental, impende dizer que no primeiro caso a ausência da licença ambiental configura uma presunção não apenas de dano ambiental, mas também de lesão ao erário. Com efeito, o prejuízo financeiro é inevitável, porque a imposição de multa simples e de embargo não é uma faculdade do órgão ambiental competente, mas uma obrigação.
Na verdade, os prejuízos imediatos são os seguintes: i) pagamento de multa simples cujo valor pode variar de R$ 500 a R$ 10 milhões e ii) despesa com a manutenção de obra embargada, cujos custos costumam ser bastante representativos. Contudo, há ainda gastos com o pagamento de possíveis compensações ambientais, quando for constatado dano ao meio ambiente, bem como com os projetos e procedimentos de regularização ambiental.
Tudo isso, é certo, a ser pago pelo bolso do contribuinte. Porém, existe ainda outra dimensão dessa novela a ser considerada: a coletividade também sofre ao deixar de receber uma obra da qual necessita, seja uma adutora, um aterro sanitário, uma barragem ou um ginásio poliesportivo.
No entanto, como algumas situações não são passíveis de regularização, a exemplo de uma construção que não se enquadre nas hipóteses legais de intervenção em área de preservação permanente ou no bioma mata atlântica, a ausência do licenciamento ambiental nesses casos significa a perda de todo o dinheiro investido. Imagine-se, em não sendo mais possível retomar a construção de uma obra pública relevante, o estrago em termos de dinheiro e de tempo para a administração pública.
Não é por outra razão que o inciso VII do artigo 12 da Lei de Licitações exigiu a consideração do impacto ambiental na análise dos projetos básicos e nos projetos executivos. Logo, é direta a relação entre a licitação e o licenciamento ambiental, visto que algum tipo de análise ou de chancela deve acontecer previamente por parte do órgão ambiental competente.
Sendo assim, os tribunais de contas têm, sim, um papel deveras relevante no que diz respeito ao licenciamento ambiental, seja fiscalizando, alertando ou até responsabilizando os gestores públicos que não compreenderem a importância do instrumento. É patente que a consideração técnica sobre o licenciamento continuará sendo feita pelos órgãos ambientais, cabendo a tais cortes apenas verificar se a licença ambiental foi obtida em tempo hábil a fim de evitar prejuízos para a administração pública e a coletividade.
Fonte: Conjur. Autor: Talden Farias em 14/07/2018
Talden Farias é advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Minerário.