15 de fevereiro de 2019, 8h00
Por Flavia Trentini e Leonardo Cunha Silva
Para iniciar a coluna “Direito do Agronegócio” no ano de 2019, trataremos das polêmicas em torno dos efeitos do Acordo de Paris para a agricultura brasileira. As críticas ao acordo se concentram em suposta ameaça à soberania brasileira[1], mas, afinal, quais obrigações legais assumidas pelo Brasil junto à comunidade internacional influenciam a agropecuária brasileira?
O Acordo de Paris é um tratado internacional celebrado na cidade que lhe dá nome, no ano de 2015[2]. Ele é fruto de discussões e negociações dos Estados nacionais que fazem parte da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC)[3]. Do ponto de vista do arranjo jurídico, a Convenção-Quadro funciona como um guarda-chuva, sob a qual estão outros tratados, como o Protocolo de Kyoto[4], a Emenda Doha[5] e o Acordo de Paris.
Cabe à Convenção-Quadro estipular princípios gerais para a cooperação internacional no combate à mudança do clima, e o Acordo de Paris estabeleceu metas e parâmetros para a contribuição de cada Estado-parte. Para isso, o acordo é dividido em duas partes. No corpo do tratado, estão os compromissos gerais, que se concentram em medidas de mitigação de emissão de gases, adaptação ao aumento da temperatura global e adequação dos fluxos financeiros a uma economia de baixo carbono. São eles, segundo o artigo 2º do acordo:
(i) “Manter o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais, e envidar esforços para limitar esse aumento da temperatura a 1,5°C”;
(ii) “Aumentar a capacidade de adaptação aos impactos negativos da mudança do clima e promover a resiliência à mudança do clima e um desenvolvimento de baixa emissão de gases de efeito estufa, de uma maneira que não ameace a produção de alimentos”;
(iii) “Tornar os fluxos financeiros compatíveis com uma trajetória rumo a um desenvolvimento de baixa emissão de gases de efeito estufa e resiliente à mudança do clima”.
Em forma de anexos estão as Contribuições Nacionalmente Determinadas (iNDC, em inglês), que são os documentos em que cada Estado-parte apresenta a sua contribuição para alcançar o objetivo comum. Trata-se de arranjo jurídico de tipo bottom up[6], técnica utilizada no Direito Internacional para aquelas questões em que há dificuldade em alcançar uniformidade. Assim, cada Estado-parte voluntariamente decidiu qual seria sua contribuição e sob qual parâmetro ela seria calculada.
Nesse cenário, o Brasil livremente se comprometeu, como medida de mitigação, a reduzir as emissões de gases de efeito estufa de forma que, em 2025, emita 37% abaixo daquilo que foi emitido no ano de 2005. Do ponto de vista da adaptação, foi prometida a finalização do Plano Nacional de Mitigação (PNA)[7], instituído desde 10 de maio de 2016 por meio da Portaria 150[8]. Não foram estabelecidos metas e objetivos explícitos sobre fluxos financeiros.
Dois setores da agricultura brasileira serão particularmente afetados por esses compromissos: o energético e o florestal/agrícola (uso da terra). A iNDC brasileira prevê que, para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa, precisará adotar políticas públicas para que a bioenergia represente aproximadamente 18% da matriz energética nacional até 2030[9].
A adoção dessas medidas já foi iniciada. Em dezembro de 2017, foi promulgada a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio)[10], que instituiu um mercado de créditos de descarbonização (CBIO). As estimativas sugerem que o novo mercado injetará no setor algo entre R$ 1,5 bilhão e R$ 6,8 bilhões[11]. Tudo isso indica que, assim como a crise do petróleo na década 1970, a crise climática será convertida em oportunidade para o setor de biocombustíveis.
Já em relação ao uso da terra, as informações de esclarecimento da iNDC brasileira prometem alcançar uma série de metas até 2030. Comprometeu-se a atingir o desmatamento ilegal zero na Amazônia brasileira (compensando as emissões de gases emitidas), reflorestar 12 milhões de hectares de floresta e melhorar as técnicas de manejo sustentável de florestas nativas.
Todas essas medidas, por mais impactantes que pareçam, não significam muito mais que o Brasil comprometendo-se a cumprir sua própria legislação. Pesquisa do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora)[12] lançada em 2017 calcula que existe um déficit total de 19,4 milhões de hectares de áreas de preservação permanente (APPs) e reservas legais (RLs). Isso significa que apenas a recomposição da vegetação que foi ilegalmente suprimida, com base no Código Florestal de 2012, é o bastante para honrarmos parte significativa dos compromissos internacionais.
Especificamente em relação ao setor agrícola, a iNDC brasileira ainda defende o fortalecimento do Plano ABC, do qual uma linha de crédito (Programa ABC) de R$ 2 bilhões foi destinada para a safra 2018/2019. Esses recursos podem ser utilizados para a introdução de tecnologias e técnicas de produção agropecuária de baixa emissão de carbono. A taxa de juros é de 6% a.a., podendo ser reduzida para até 5,25% naqueles projetos que visam regularizar as propriedades rurais à legislação ambiental[13].
Tudo isso leva-nos a crer que os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no âmbito do Acordo de Paris estão alinhados com sua legislação interna. Nessa seara, os principais impactos do Acordo de Paris na agricultura são o retorno da importância do setor de biocombustíveis, gravemente deteriorado pelas políticas econômicas no preço da gasolina entre 2008 e 2014, e o reforço quanto ao cumprimento do Código Florestal — cenário esse muito distante de uma violação à soberania brasileira.
[1] Exemplos dessas críticas podem ser vistos em notícias de canais de informação brasileiros como Terra e Valor. Vide “Bolsonaro diz que Brasil deixará Acordo de Paris se não forem aceitas mudanças”. Terra, [s.l.], 12 dez. 2018. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/bolsonaro-diz-que-brasil-deixara-acordo-de-paris-se-nao-forem-aceitas-mudancas,d788a5152dbb57db94b02a4133a5157dh1ila34v.html>. Acesso em: 7 fev. 2019 e KLEIN, Cristian; ROSAS, Rafael. “Bolsonaro ameaça deixar o Acordo de Paris se mudanças não forem aceitas”. Valor, Rio de Janeiro, 12 dez. 2018. Disponível em: https://www.valor.com.br/politica/6023525/bolsonaro-ameaca-deixar-acordo-de-paris-se-mudancas-nao-forem-feitas. Acesso em: 7 fev. 2019.
[2] A tratado tornou-se disponível para assinatura no dia 22 de abril de 2016, na sede da Organização das Nações Unidas em Nova Iorque. Naquela oportunidade, 175 países assinaram o documento. Esse número foi alterado com a saída dos Estados Unidos e a entrada de outros países. Uma versão em português do acordo pode ser lida por meio do decreto que o internalizou no ordenamento jurídico brasileiro. Vide BRASIL. Decreto 9.073, de 5 de julho de 2017. Promulga o Acordo de Paris sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, celebrado em Paris, em 12 de dezembro de 2015, e firmado em Nova Iorque, em 22 de abril de 2016. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 154, n. 107, p. 3-7, 6 jun. 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9073.htm>. Acesso em: 7 fev. 2019.
[3] Uma versão em português da UNFCCC pode ser lida por meio do decreto que o internalizou no ordenamento jurídico brasileiro. Vide BRASIL. Decreto 2.662, de 1º de julho de 1998. Promulga a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima, assinada em Nova York, e, 9 de maio de 1992. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 135, n. 124, p. 6-11, 2 jul. 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2652.htm>. Acesso em: 7 fev. 2019.
[4] Uma versão em português do Protocolo de Quioto pode ser lida por meio do decreto que o internalizou no ordenamento jurídico brasileiro. Vide BRASIL. Decreto 5.445, de 12 de maio de 2005. Promulga o Protocolo de Quioto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do clima […]. Diário Oficial da União: seção 1. Brasília, DF, ano 142, n. 91, p. 1-6, 13 maio 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/D5445.htm>. Acesso em 7 fev. 2019.
[5] ONU. Doha amendment to the Kyoto Protocol. Disponível em: <https://unfccc.int/files/kyoto_protocol/application/pdf/kp_doha_amendment_english.pdf>. Acesso em: 7 fev. 2019.
[6] REI, Fernando; CUNHA, Kamyla. O Brasil e o regime internacional das mudanças climáticas. In.: Granziera, Maria Luiza Machado; REI, Fernando. (Orgs.). O futuro do regime internacional das mudanças climáticas: aspectos jurídicos e institucionais. Santos: Edita Livros, 2015. p. 22.
[7] BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Plano nacional de adaptação à mudança do clima: sumário executivo. Brasília, DF: Ministério do Meio Ambiente, 2016. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/images/arquivo/80182/LIVRO_PNA_Resumo%20Executivo_.pdf>. Acesso em: 7 fev. 2019.
[8] BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Portaria n. 150, de 10 de maio de 2016. Institui o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1. Brasília, DF, ano 153, n. 89, p. 131-132, 11 maio 2016. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/images/arquivo/80182/Portaria%20PNA%20_150_10052016.pdf>. Acesso em: 07 fev. 2019.
[9] BRASIL. Informação adicional sobre a iNDC apenas para fins de esclarecimento. 2015. p. 3. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/images/arquivo/80108/BRASIL%20iNDC%20portugues%20FINAL.pdf>. Acesso em: 7. fev. 2019.
[10] BRASIL. Lei 13.576, de 26 de dezembro de 2017. Dispõe sobre a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio) e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1. Brasília, DF, ano 154, n. 247, p. 4-5, 27 dez. 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13576.htm>. Acesso em: 7 fev. 2019.
[11] Órgãos reguladores brasileiros e internacionais estão engajados no esforço de atribuir um custo aos impactos gerados pelas emissões de gases de efeito estufa na atmosfera. Por aqui, o RenovaBio é o pontapé inicial. Nocana.com, Curitiba, 3 ago. 2018. Disponível em: <https://www.novacana.com/n/eventos/mario-sergio-vasconcelos-febraban-o-mercado-de-carbono-no-setor-financeiro-030818>. Acesso em 07 fev. 2019.
[12] GUIDOTTI, Vinicius [et al.]. Números detalhados do novo Código Florestal e suas implicações para os PRAs. Sustentabilidade em Debate, n. 5, maio 2017. Disponível em: <http://www.imaflora.org/downloads/biblioteca/5925cada05b49_SUSTemDEB_low_web_links.pdf>. Acesso em 7 fev. 2019.
[13] BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Plano agrícola e pecuário 2018/2019. Brasília, DF: MAPA, 2018. p. 11. Disponível em: <http://www.imaflora.org/downloads/biblioteca/5925cada05b49_SUSTemDEB_low_web_links.pdf>. Acesso em 7 fev. 2019.
FONTE: CONJUR
Flavia Trentini é professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, livre-docente e doutora em Direito pela USP, com pós-doutorado em Administração e Economia das Organizações pela USP e pela Scuola Universitaria Superiore Sant’anna (Itália).
Leonardo Cunha Silva é advogado e mestrando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto.