11 de fevereiro de 2019, 8h14
Por Antônio Martins-Costa e Alexandre Wunderlich
*Texto editado às 16h47 para correção. O artigo havia sido erroneamente atribuído a Alberto Wunderlich.
Os meios de comunicação já noticiaram prisões e indicaram que é cogitada uma espécie de responsabilização objetiva de dirigentes de empresas por supostos crimes ocorridos em Brumadinho (MG). Segundo notícias relacionadas ao caso, por terem empregado na barragem tecnologia inferior, algumas empresas poderiam ser responsáveis – nas pessoas de seus dirigentes e, em tese, por crimes contra a vida e contra o meio ambiente; até pessoas que possuíam poder de mando à época da construção do empreendimento e que participaram de decisões em favor da utilização de tecnologias mais baratas poderiam ser responsabilizadas.
O presente artigo, descurado de hipóteses fáticas e escrito apenas por razões de argumentação acadêmica, pretende fazer um alerta. Em nosso juízo, a hipótese aventada é equivocada e só serve para atender reclamos sociais em momentos de tragédia e de tristeza. É certo que a responsabilidade de cada pessoa no interior de sociedades empresariais complexas é de difícil particularização, pois muitas vezes impera o que a boa doutrina cognomina de “irresponsabilidade organizada”[1], situação que decorre da organização descentralizada e das divisões funcional e de trabalho inerentes à sua estruturação – uma espécie de “responsabilidade pela situação – Zustandshaftung”. Todavia, o fenômeno não dispensa os órgãos de persecução penal da obrigação de atentar a parâmetros racionais e mínimos de imputação. No tocante a tais vetores, destacamos dois pontos que merecem exame – ainda que de forma perfunctória e em tese.
O primeiro diz respeito ao fato de que, ainda que no Direito Ambiental possa ser imposta uma responsabilidade objetiva sob as perspectivas civil e administrativa, é elementar que no campo penal – de dimensão constitucional –, só é admitida a responsabilidade subjetiva. Para a responsabilização penal dos dirigentes de empresa, é imprescindível a individualização de uma “específica e determinada conduta empresarial”, a identificação do liame subjetivo estabelecido entre a ação/omissão do membro da direção e o resultado do acidente/crime, vínculo cujo conteúdo mínimo é a “culpa inconsciente”.
No ponto, os gestores e dirigentes empresariais não podem ser responsabilizados penalmente se o risco de rompimento da estrutura só era previsível àqueles que possuíam um determinado nível de conhecimento técnico – não é aceita “presunção negativa”, mormente quando as empresas cumpriram os parâmetros legais para avaliações de risco.
Também não há de se cogitar da hipótese de responsabilização penal se os dirigentes foram alimentados por informações ou indicadores técnicos equivocados, falsos ou imprecisos – a premissa é óbvia, mas em tempos de déficit de garantias e de diluição das estruturas teóricas com o intuito de facilitar o enfrentamento dos problemas complexos trazidos pela criminalidade não-convencional, vale sublinhar.[2]
Em casos como o de Brumadinho, frequentemente, as denúncias intencionalmente apresentam uma visão redutora da realidade, desprezando a linha fundamental do exame do processo de causalidade e resultado, ampliando o espectro da responsabilidade, mais das vezes, dando elasticidade demasiada à figura jurídica do “dolo eventual”.[3]
O segundo ponto diz respeito aos pressupostos da responsabilização por um crime omissivo. Seria possível cogitar da responsabilização dos dirigentes a título omissivo impróprio pela chamada “responsabilidade pela situação” (Zustandschaftung)?[4] Como os dirigentes possuiriam um suposto domínio sobre uma fonte de perigos, eles teriam o dever, na qualidade de garantes, de tomar medidas positivas para que o risco oferecido pela estrutura perante terceiros mantivesse-se dentro de limites juridicamente permitidos. A medida positiva em comento, por certo, caminha no sentido de um dever/obrigação dos dirigentes de empresas, no caso de Brumadinho, de estarem obrigados a optar por tecnologia mais segura.
A responsabilidade omissiva imprópria nos crimes ambientais está prevista no artigo 4º da Lei 9.605/98, o qual deve ser lido com o parágrafo 2° do artigo 13 do Código Penal, que prevê os critérios gerais da responsabilidade omissiva imprópria. Caso não tenha havido delegação de função, o que se argumenta apenas em tese, os dirigentes que participaram do processo de projeto/abertura da barragem poderiam ser enquadrados como garantes pela ingerência (artigo 13, parágrafo 2º, “c”), enquanto os dirigentes que assumiram o comando da empresa no momento posterior enquadrar-se-iam na hipótese de assunção (artigo 13, parágrafo 2º, “b”).
Ocorre que, para afirmação da responsabilidade omissiva imprópria, não basta a constatação de que eles ocupavam, ao tempo dos fatos, a posição de garantia em relação à barragem. Impõe-se verificar se eles observavam os deveres de garantia aos quais estavam obrigados em razão de suas atribuições – é o grande problema da responsabilização dos membros das diretorias a título omissivo.
Ao que se transparece, o emprego da tecnologia utilizada, apesar de oferecer maiores riscos, foi autorizado pela legislação brasileira e, ademais disso, pelos órgãos governamentais. Então, tudo indica que os entes coletivos, por meio de seus gestores e dirigentes, adotaram as medidas de segurança que lhes eram exigidas em lei, mantendo o risco da operação dentro daquilo que era juridicamente permitido, de forma que não se pode cogitar de qualquer responsabilidade omissiva dos dirigentes por terem empregado, por exemplo, uma tecnologia menos segura, cujo uso, porém, é legal.
Então, mais do que procurar responsáveis, o que a tragédia impõe é a urgente discussão sobre os critérios legais para a concessão de licenciamento pelos órgãos públicos, exigindo – talvez em legislação especial –, por exemplo, o emprego da melhor tecnologia disponível para operações que ofereçam grandes riscos para pessoas e para o meio ambiente, com a obrigatoriedade de reavaliação de critérios de fontes de perigo e a adoção de programas de compliance (também) em matéria ambiental[5], com o necessário aprimoramento dos planos de emergência em ações de risco.
[1] Por todos, v. o excepcional trabalho de: ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão(…). SP: Marcial Pons, 2017, p. 47 et seq. Também: DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral(…). 2º ed., Coimbra: Coimbra Ed., 2007, p. 947.
[2] Ver: Mendes, Paulo de Sousa. Vale a pena o direito penal do ambiente? Lisboa: AAFDL, 2000; WUNDERLICH, A. “A responsabilidade penal por danos ambientais: do cenário atual à avaliação crítica ao modelo de imputação(…). Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 114, São Paulo, ano 2015.
[3] Ver: os exemplos públicos dos casos do “Incêndio na Boate Kiss”, em Santa Maria/RS (2013) e do “ Rompimento da Barragem de Fundão – Samarco Mineração S.A.”, em Mariana/MG (2015).
[4] Sobre a responsabilidade omissiva em razão do domínio sobre fontes de perigos: Schünemann, Bernd. Fundamentos y límites de los delitos de omisión impropria: con una aportación a la metodología del Derecho Penal. Madrid: Marcial Pons, 2009, p. 327-367.
[5] SARAIVA, Renata. Criminal compliance como instrumento de tutela ambiental: a propósito da responsabilidade penal de empresas, São Paulo: LiberArs, 2018
FONTE: CONJUR
Antônio Martins-Costa é advogado, mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS e professor de Direito Penal da Fisul
Alexandre Wunderlich é advogado, doutor em Direito e professor de Direito Penal da PUC-RS