Suprema Corte do México

A Suprema Corte de Justiça do México e o dever de proteção ecológica

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A Suprema Corte de Justiça do México e o dever de proteção ecológica

5 de abril de 2019

Por Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer

Suprema Corte de Justiça do México
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Em meio a um número cada vez maior e preocupante de desastres e outras violações ocasionais e sistemáticas do equilíbrio ecológico, mas também considerando que em muitos países — o Brasil, infelizmente, se insere nesse grupo — têm sido levadas a efeito e propostas reformas legislativas no sentido de reduzir os níveis de proteção jurídica do meio ambiente, decisões como a proferida pela Suprema Corte de Justiça do México (que exerce função similar a do Supremo Tribunal Federal entre nós), em sessão realizada no dia 14.11.2018, no julgamento do Recurso de Amparo de Revisão 307/2016, merecem ser visibilizadas e difundidas.

No caso, o processo envolvia medidas relacionadas a danos ecológicos irreversíveis a ecossistemas de zonas húmidas costeiras e manguezais e a espécies terrestres e aquáticas de tais biomas, verificados na região da cidade de Tampico, em razão de projeto de construção de parque temático (“Parque Temático Ecológico Laguna del Carpintero”). A decisão da Corte mexicana, de forma pioneira, serviu-se, na sua fundamentação, tanto da Opinião Consultiva n. 23/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)[1] quanto do Acordo Regional de Escazú para América Latina e Caribe sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Matéria Ambiental (2018).

Além de atribuir expressamente ao direito a viver em um ambiente adequado e sadio a natureza de direito fundamental (e direito humano, pelo prisma do Direito Internacional dos Direitos Humanos) plenamente justiciável e, portanto, passível de ser exigido e reivindicado perante o Poder Judiciário, a decisão colocou em prática verdadeiro “diálogo de fontes normativas” (e também “diálogo de Cortes”), reconhecendo a característica normativa pluridimensional do regime jurídico ecológico contemporâneo (nacional, comparado, regional, internacional) e destacando vários aspectos inovadores na temática, entre os quais se destacam:

a) Dupla dimensão do direito fundamental (e humano) ao ambiente. A Corte reconheceu, na sua decisão, que o regime jurídico de proteção do direito fundamental e humano ao ambiente possui tanto uma dimensão subjetiva ou antropocêntrica, em relação à sua relação e utilidade para o ser humano, quanto uma dimensão estritamente ecológica ou objetiva, como bem jurídico autônomo, inclusive por meio do reconhecimento do valor intrínseco da Natureza pela sua mera existência, na linha da atual tendência apontada pela CIDH na Opinião Consultiva 23/2017 de “reconhecer a personalidade jurídica e, por fim, os direitos da Natureza, não só em decisões judiciais, mas também nos ordenamentos constitucionais”.[2] A decisão, nesse contexto, trata de “conciliar” os paradigmas filosóficos e jurídicos antropocêntrico e ecocêntrico, num marco jurídico capaz de assegurar a integridade ecológica como um bem jurídico dotado de autonomia e digno de proteção jurídica de forma dissociada dos interesses e propósitos humanos.

b) Titularidade simultaneamente individual e coletiva (ou difusa) do direito fundamental ao ambiente. A Corte mexicana adotou entendimento consolidado expressamente pela CIDH na OC 23/2017, no sentido de que o direito humano a um ambiente saudável tem sido entendido como um direito com conotações tanto individuais quanto coletivas. DE acordo com o entendimento da CIDH, na sua dimensão coletiva, o direito a um ambiente saudável constitui um interesse universal devido às gerações presentes e futuras. Por outro lado, em sua dimensão individual, sua violação pode ter repercussões diretas e indiretas sobre as pessoas devido à sua conexão com outros direitos, como o direito à saúde, à integridade pessoal ou à vida, entre outros.[3]

c) Princípio in dubio pro natura. A Corte reconheceu expressamente o princípio in dubio pro natura, em sintonia com a previsão do art. 2, itens 7 e 8, do Acordo de Escazú, inclusive de forma autônoma em relação ao princípio da precaução, ao assinalar na decisão que o mesmo “não só é aplicável face à incerteza científica, mas também como um mandato interpretativo geral da justiça ambiental, no sentido de que em qualquer conflito ambiental deve prevalecer sempre a interpretação que favoreça a conservação do ambiente”. Em linhas gerais, a Corte reconheceu a natureza de princípio geral do Direito Ambiental, como parâmetro interpretativo para a resolução dos conflitos judicias ecológicos. Tal entendimento é particularmente relevante para a analise de conflitos legislativos, notadamente à luz do sistema de competências legislativas concorrentes entre os entes federativos, tal como previsto na nossa Lei Fundamental de 1988 (art. 24, VI).

d) Princípio da proibição da não-regressão ou de retrocesso ecológico. A Corte assinalou que o princípio em questão “está relacionado com a inclusão das gerações futuras na noção de desenvolvimento ou progresso, uma vez que qualquer diminuição injustificada e significativa do nível de proteção ambiental alcançado afetará o patrimônio que será transmitido à próxima geração”. Outro aspecto importante pontuado sobre o tema na decisão diz respeito à sua aplicação no âmbito do regime jurídico das “áreas especialmente protegidas” (ex. unidades de conservação), ao assinalar que “o princípio da não regressão está intimamente relacionado com os espaços ou áreas naturais protegidas, na medida em que limita as possibilidades de diminuir ou modificar injustificadamente qualquer nível de proteção assegurada pela declaração especial de proteção.”

e) Direito à participação pública e cidadania ecológica, legitimidade processual ampla e acesso à justiça. Com base no Acordo de Escazú, a Corte mexicana destacou que “o contexto propício à participação dos cidadãos na proteção do ambiente é também garantido por meio de formas de ampla legitimação ativa; com efeito, este princípio exige também o reconhecimento de que, mesmo que o interesse afetado não toque diretamente o recorrente, os Estados devem garantir o acesso à tutela judicial através de várias fórmulas de ampla legitimação ativa”. Em outra passagem, envolvendo o controle de políticas públicas ambientais por parte dos cidadãos e o dever estatal correlato, a Corte assinalou que “correlativamente, destaca-se o dever de todas as autoridades, no âmbito das respectivas competências, de incentivar a participação dos cidadãos, ou seja, de assegurar um ambiente propício à proteção do ambiente, nomeadamente através da criação de instrumentos institucionais e legais que visem a inclusão dos cidadãos no controlo das políticas públicas com impacto ambiental”. A decisão consagrou o conteúdo tanto da OC 23/2017 quanto do Acordo de Escazú – além do Princípio 10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992) e a Convenção de Aarhus (1998), no tocante aos denominados direitos ambientais procedimentais ou direitos ambientais de participação, representados pela tríade: acesso à informação, participação pública na tomada de decisões e acesso à justiça.

f) Papel do juiz em matéria ambiental, governança judicial ecológica e a flexibilização de institutos processuais. A Corte assinalou na sua decisão que “a configuração especial do Direito Ambiental exige uma mudança na lógica jurídica caracterizada, principalmente, pela flexibilização de diversos institutos do direito processual. A justiciabilidade do direito humano ao meio ambiente não pode ser desenvolvida com base nos modelos ‘clássicos” ou “tradicionais’ de prestação jurisdicional, pois na maioria dos casos estes são insuficientes e inadequados para este fim”. A Corte, ao reconhecer as situações de desigualdade que caracterizam os litígios ecológicos, assinalou que “esse tipo de controvérsia parte de uma situação de desigualdade (de poder político, técnico, econômico), entre a autoridade responsável e o vizinho, cidadão, morador, habitante, afetado, beneficiário, usuário, consumidor, de modo a não tornar ilusória a proteção do meio ambiente, e, em função do princípio da participação cidadã, é necessário adotar medidas que corrijam esta assimetria”. Diante de tal cenário, segundo a Corte, “há duas ferramentas no processo que o juiz tem para corrigir a assimetria enfrentada pelos cidadãos na proteção ambiental: a) a inversão do ônus da prova de acordo com o princípio da precaução; e b) o papel ativo do juiz para fornecer os meios de prova necessários”. Por fim, assinalou a Corte que o Juiz “em ações judiciais envolvendo o direito humano ao meio ambiente deve, em primeiro lugar, fazer uma avaliação preliminar da existência do risco de dano ou dano ao meio ambiente; essa avaliação levará em conta um critério de razoabilidade regido principalmente pelos princípios da precaução e in dubio pro natura. (…) Diante da atualização do risco de dano ambiental, o juiz adquire um papel mais ativo, do qual tem o poder de coletar de ofício as provas que julgar pertinentes para dispor de elementos que lhe permitam conhecer, com maior precisão, o risco de dano ambiental, suas causas, bem como as possíveis repercussões no ecossistema considerado violado. (…) Em relação a esta figura, cabe ressaltar que ela tampouco rompe com o princípio da igualdade processual, pois não busca apenas o equilíbrio da relação assimétrica entre as partes, mas também, reitera-se, o eixo central na proteção do meio ambiente gira em torno de sua salvaguarda como bem jurídico em si, e não apenas em relação à proteção das partes, o que justifica este trabalho ativo do juiz”.

Na parte final da passagem citada e por força da dimensão estritamente ecológica ou objetiva do regime jurídico de proteção ecológica (constitucional e internacional), conforme reconhecido expressamente na decisão da Suprema Corte de Justiça do México, emerge um sólido e inovador fundamento de matriz ecocêntrica no regime jurídico de proteção ecológica. Ou seja, na medida em que se atribui à Natureza e aos elementos naturais (animais, plantas, rios, florestas, paisagens, mares, etc.) um valor em si mesmo (portanto, intrínseco), os Juízes e Tribunais, nos casos que lhe são submetidos em que tais os bens jurídicos ecológicos encontram-se em situação de risco de dano ou de dano, assumem o papel de “guardião” da Natureza e das futuras gerações, para além dos interesses unicamente das partes litigantes e constante dos polos processuais ativo e passivo. É isso que está dito, em linhas gerais e de forma emblemática, na decisão da Corte mexicana. Um ponto que não foi tratado de forma explícita na decisão, mas que esta subjacente a tal temática diz respeito ao reconhecimento dos direitos dos animais não-humanos e da Natureza. Na Colômbia, em 2018, a Corte Suprema reconheceu, em caso de litigância climática contra o desmatamento florestal, a Amazônia colombiana como “entidade sujeito de direitos”[4], repetindo entendimento jurisprudencial anterior da Corte Constitucional do País que havia atribuído, em decisão de 2016, o mesmo status jurídico ao Rio Atrato[5], na linha, aliás, dos direitos da Pachamama consagrados paradigmaticamente pela Constituição Equatoriana de 2008. O reconhecimento dos direitos da Natureza, estabelece, por sua vez, um regime jurídico de proteção ecológica independente e autônoma em relação aos interesses humanos, reconhecendo-se a personalidade jurídica e status de pessoa ou sujeito jurídico para além do espectro humano (como, aliás, os ordenamentos reconhecem há séculos em relação às corporações empresariais).

A legitimidade da atuação do Poder Judiciário na seara ecológica, alinhado com a aplicação do ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional em matéria ambiental, encontra-se na defesa de interesses e direitos muitas vezes sub-representados na arena política, titularizados por sujeitos de direitos que não possuem voz ou mesmo capacidade de influir diretamente nos rumos políticos, como é o caso das crianças e dos adolescentes, situação esta desnudada recentemente pelo movimento ecológico-climático estudantil denominado Fridays for Future[6]. O mesmo se pode dizer em relação aos interesses (e direitos) das futuras gerações, dos animais não-humanos, dos elementos naturais (rios, florestas, paisagens, etc.) e da Natureza como um todo (Gaia), na medida em que gradualmente os sistemas jurídicos têm reconhecido a sua natureza de sujeito de direitos e lhes atribuído personalidade jurídica, como referido anteriormente. Os Juízes e Tribunais, na aplicação da legislação ecológica nos litígios judiciais em matéria ambiental, acabam por tutelar e dar voz a interesses (e direitos?) de sujeitos que não integram a relação processual em si, ao menos não diretamente. Isso, por si só, reforça o dever constitucional e papel do Poder Judiciário de atuar de forma ativa na defesa de tais interesses e direitos, figurando como “guardião” dos mesmos por meio do exercício da governança judicial ecológica.

Por fim, resta-nos apenas destacar o belo exemplo de governança judicial ecológica adotado pela Suprema Corte de Justiça do México a ser seguido pelo Poder Judiciário brasileiro, especialmente pelas nossas Cortes Superiores (STF e STJ), inclusive à luz de um saudável e cada vez mais necessário “diálogo de Cortes”, para além do “diálogo de fontes normativas”, tomando por premissa o dever de cooperação internacional e esforço comum da comunidade internacional no enfrentamento da crise ecológica global contemporânea. Nacionalismos populistas, sejam eles representados por muros de concreto e arame farpado, sejam por tradições e marcos jurídicos tradicionais edificados num passado distante e com base numa concepção de soberania “empoeirada” dos velhos manuais, significam a contramão do caminho que a humanidade precisa seguir neste momento crucial e desafiador do nosso percurso civilizatório. Viver ou não viver no futuro, eis a questão!

[1] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva n. 23/2017 sobre “Meio Ambiente e Direitos Humanos”. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf. Acesso em: 21.03.2019.
[2] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Opinião Consultiva n. 23/2017…, p. 28-29 (parágrafo 62).
[3] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Opinião Consultiva n. 23/2017…, p. 27 (parágrafo 59).
[4] Íntegra da decisão proferida pela Corte Suprema Colombiana, no julgamento da STC4360-2018 (Radicacion n. 1100-22.03-000-2018-00319-01), proferida em 05.04.2018, disponível em: http://www.cortesuprema.gov.co/corte/index.php/2018/04/05/corte-suprema-ordena-proteccion-inmediata-de-la-amazonia-colombiana/. Acesso em: 21.03.2019.
[5] Íntegra da decisão proferida pela Corte Constitucional Colombiana, no julgamento da T-622/16, proferida em 10.11.2016, disponível em: http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2016/t-622-16.htm. Acesso em: 25.02.2019.
[6] Disponível em: https://www.fridaysforfuture.org. Aceso em 12.03.2019.

FONTE: CONJUR


 é professor titular da Faculdade de Direito da PUC-RS, desembargador aposentado do TJ-RS e jurista.

 é defensor público no estado de São Paulo. Doutor e mestre em Direito Público pela PUC-RS, com pesquisa de doutorado-sanduíche junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social e Política Social de Munique, na Alemanha. Autor da obra Defensoria Pública na Constituição Federal. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2017.

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