Nos últimos anos, tem se popularizado o uso de dispositivos destinados à chamada “microgeração de energia elétrica”. São pequenos geradores de energia elétrica, normalmente baseados em energia solar ou eólica. Instalados na residência de um consumidor de energia, por exemplo, transformam a luz solar, ou a força dos ventos, em energia elétrica, para consumo de quem o adquiriu e instalou.
A unidade consumidora de energia, quando dotada de um microgerador, passa a consumir bem menos da energia elétrica fornecida pela respectiva concessionária de serviços públicos, por conta da energia gerada para si, o que representa economia significativa. Especialmente em Estados como os do Nordeste, nos quais faz sol praticamente o ano inteiro, e venta bastante, tem-se aí importante alternativa às formas tradicionais de produção energética. O interessante é que, caso a energia gerada, por uma unidade equipada com um microgerador, supere a quantidade consumida naquele instante, o excedente é injetado na rede pública, e o medidor “roda ao contrário”. Ou seja, se, durante o dia, uma casa com diversos painéis solares em seu telhado está desocupada, gerando muito mais energia do que consome, todo o excedente é inserido na rede pública, podendo ser por meio dela transmitido para outros usuários. Quando, no começo da noite, a família retorna para casa, e o consumo aumenta, e a quantidade gerada passa a ser inferior à consumida, a residência, que está também ligada à rede pública de fornecimento de energia, consume a energia fornecida por essa rede, e o medidor volta a girar no sentido normal. Ao final do mês, a concessionária de energia elétrica fatura e cobra de referida unidade consumidora apenas o saldo devedor, se houver. Vale dizer, cobra pela energia correspondente à diferença entre aquela que foi produzida pelo microgerador e a que foi consumida a partir da rede pública. Caso o saldo seja positivo (tiver sido gerada uma quantidade superior à consumida), transfere-se o saldo para o mês seguinte, quando se retoma a sistemática (Resoluções Normativas 687/2015 e 482/2012 da ANEEL). Em uma comparação ilustrativa, a rede pública funciona como uma bateria, e o titular da unidade de microgeração de energia paga apenas pela energia que usa dessa bateria que seja superior àquela que guardou nela. Sabe-se que, quando surgem novidades, naturalmente surgem as preocupações sobre como tributar essas novidades. E com a microgeração não foi diferente. Logo quando de sua implantação, passou-se a questionar como deveria ser o ICMS calculado e cobrado sobre a energia assim produzida. O problema é que, em um primeiro momento, alguns Estados-membros pretenderam tributar toda a energia produzida por um microgerador, no qual exigiam que fosse instalado um medidor autônomo. Tributação que alcançaria até a energia produzida e inteiramente consumida pelo próprio titular do microgerador, que poderia mesmo nem estar conectado à rede pública. Quanto àquela injetada na rede pública, a fortiori, deveria ser por igual tributada. E a consumida da rede pública, também, toda ela, e não só a que excedesse à gerada e injetada nessa rede. Exemplificando, se em um determinado mês, uma residência com microgerador instalado produzisse 1.000 Kwh, mas consumisse 1.500 Kwh, pagando à empresa concessionária do serviço de fornecimento de energia pelo consumo dos 500 Kwh excedentes à sua produção própria, o Estado não cobraria o ICMS sobre o valor pago pelos 500 Kwh. Exigiria o ICMS sobre o valor dos 2.500 Kwh. Sim, dos 1000 produzidos e dos 1500 consumidos, totalizando 2500! Como facilmente se percebe, esse entendimento inviabilizaria, por completo, o emprego dessa tecnologia, emprego que seria desejável para a Economia e principalmente para o meio ambiente. A geração a partir de energia solar, e eólica, é ecologicamente mais adequada que a geração nuclear, termelétrica e mesmo sobre a hidrelétrica, que implica a inundação de largas faixas de terra. E, mesmo no caso de grandes usinas que também se valem da energia solar ou eólica, seus impactos ambientais, por no mínimo ocuparem largas faixas de terra e interferirem no meio ambiente natural, são maiores do que o dos microgeradores que usam das mesmas tecnologias. O impacto ambiental de se colocarem placas solares nos tetos de milhares de casas em uma cidade é nenhum, se comparado ao de se instalarem juntas todas essas mesmas placas por larga faixa de terra descampada, em uma região mais distante. E isso para não se referir o fato de que a transmissão por grandes distâncias – desde as localidades onde estão as grandes usinas, até os consumidores – implica em perdas mais expressivas. Para minimizar os efeitos de tais prejuízos, e não inviabilizar o uso de tais novas tecnologias geradoras, o Confaz permitiu, e alguns Estados passaram a conceder, “isenção” sobre o ICMS produzido por microgeradores. O Convênio Confaz 16/2015 permite aos Estados “conceder isenção do ICMS incidente sobre a energia elétrica fornecida pela distribuidora à unidade consumidora, na quantidade correspondente à soma da energia elétrica injetada na rede de distribuição pela mesma unidade consumidora com os créditos de energia ativa originados na própria unidade consumidora no mesmo mês, em meses anteriores ou em outra unidade consumidora do mesmo titular, nos termos do Sistema de Compensação de Energia Elétrica, estabelecido pela Resolução Normativa nº 482, de 17 de abril de 2012.” Com isso, no caso de saldo devedor, ao final do mês, correspondente à diferença entre quantidade gerada (e os créditos de quantidades geradas em meses anteriores), e a quantidade consumida, sendo esta última superior, o ICMS seria devido apenas sobre essa diferença. As demais situações, conquanto tidas como em tese tributáveis, seriam agora “isentas”. A solução parece equacionar o problema, embora ainda dependa de lei estadual para que se conceda a “isenção” que o Confaz apenas “autorizou”. Mas ela é desnecessária, e revela, pelo menos, duas coisas. A primeira é um total desapego às categorias de Teoria do Direito Tributário. E, a segunda, é a despreocupação, por parte de algumas autoridades encarregadas de aplicar a lei tributária em nosso país, com questões ambientais. O chamado “tributo ambiental”, ou o uso da tributação, com efeito extrafiscal, para se promover a proteção do meio ambiente, muitas vezes funciona apenas como verniz ou pretexto para se justificarem aumentos na carga tributária (sobre quem eventualmente é tido como poluidor). Nos casos em que uma redução nessa carga seria necessária a permitir a implantação de tecnologia ambientalmente saudável, tais preocupações ambientais são esquecidas. Quanto à energia gerada e consumida pela própria unidade, é evidente que não incide o ICMS, o que aliás independente de qualquer consideração de ordem ambiental. Não se trata de isenção, mas de não incidência. A situação é igual à do sujeito que, no quintal de sua própria casa, tem uma pequena horta na qual cultiva manjericão, tomates e cebolas. Caso colha alguns desses vegetais, ao chegar do trabalho, para preparar uma massa para a sua família, é evidente que não se pode cogitar de incidência do ICMS, pois não houve operação de circulação de mercadoria. Não houve operação. Não houve circulação. E tais bens não são mercadorias, pois não se destinam ao comércio. O mesmo se dá com a energia microgerada e consumida pelo proprietário do microgerador. Quanto à excedente, injetada na rede pública, tampouco pode haver incidência do ICMS, independentemente de a quantidade superar a consumido no mês, gerando créditos para o mês seguinte, ou não. No caso da injetada na rede pública em determinado horário, mas em quantidade que é superada pela que se consome em outro horário, não há circulação de mercadoria, mas apenas a troca de um mesmo bem, que é fungível. Pretender tributá-la seria o mesmo que tributar duas vezes a compra de uma mesma camisa, apenas porque o comprador voltou à loja para trocá-la por outra de tamanho menor, ou de cor diferente, fazendo o ICMS incidir sobre as duas. Na verdade, apenas o saldo devedor, caso se consuma mais energia do que se produziu, ao longo de todo o período de apuração, pode ser considerado circulação de mercadoria, sujeito à incidência do ICMS. Mesmo nos períodos em que se gera mais energia do que se consome, injetando-se na rede pública todo o excedente e permanecendo-se com o crédito para uso em períodos seguintes, não pode haver incidência do ICMS, embora, aparentemente, haja “circulação” de mercadoria. Primeiro, porque a concessionária de energia não paga por essa energia. Ela confere um crédito, cuja natureza mais se assemelha a de pontos de programas de milhagens, e que inclusive, como estes, expiram ao longo de um tempo. Tais créditos só podem ser usados para abatimento na própria energia consumida em períodos seguintes, funcionando, portanto, como meros descontos. Além disso, se de incidência se pudesse tratar, seria preciso reconhecer ao usuário, titular da unidade microgeradora, o direito ao crédito do ICMS incidente sobre toda a energia que entrou em sua unidade. Finalmente, mas não menos importante, essa energia, injetada na rede pública, será consumida por outros usuários, os quais pagarão sobre ela o ICMS! Tributá-la quando microgerada e injetada na rede, e depois quando consumida por outros usuários ligados a essa mesma rede, implicaria evidente bis in idem. Vê-se, nessa ordem de ideias, que a isenção autorizada pelo Convênio Confaz 16/2015, conquanto sinalize uma boa intenção, é inócua, revelando apenas a presença de uma compreensão distorcida – por parte dos Fiscos Estaduais – a respeito de conceitos elementares de Direito Tributário, e das finalidades do Tributo, quando usado com efeito indutor, para propósitos ambientais. A tributação ambiental não pode servir apenas como desculpa para aumento de carga sobre atividades poluentes, mas principalmente para incentivar – ou pelo menos não atrapalhar – a introdução de tecnologias que, como a da microgeração de energia, permitam conciliar desenvolvimento com preservação e proteção ambiental. Nem se alegue, em oposição, que isso poderia – caso se desenvolva muito o mercado da microgeração – colocar em risco a arrecadação do ICMS, ou a receita das concessionárias de energia elétrica, o que pode inclusive levar um ou outro Estado a “repensar” o “favor” representado pela “isenção”. Na verdade, mesmo dando com certo esse efeito sobre a arrecadação, o argumento continuaria sendo equivocado, pois o Estado deveria encontrar, nesse caso, outras fontes de arrecadação. Ou seria normal, por exemplo, que as Fazendas passassem a defender o desmatamento, e a se preocupar com a subsistência das madeireiras que o praticam, usando como justificativa uma apreensão com possível perda da receita relativa ao ICMS incidente sobre a madeira? Para responder essa pergunta, nem é preciso invocar o Protocolo de Kyoto, ou o art. 170, VI, da CF/88, cuja redação (dada pela EC 42/2003), foi por ele influenciada. O absurdo fala por si. FONTE: Revista Consultor Jurídico, 2 de outubro de 2019. Por Hugo de Brito Machado Segundo Hugo de Brito Machado Segundo é doutor e mestre em Direito, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e do Centro Universitário Christus (Unichristus). Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA). Visiting scholar da Wirtschaftsuniversität (Viena, Áustria).Nossa Newsletter
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